Amigos do jazz + bossa

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

NÃO HÁ RATOS EM PADDINGTON HALL


O pequeno homem de chapéu coco e bigodes espessos parecia pouco à vontade. Havia algo de volátil naquela sala espaçosa e mal iluminada que o incomodava. Era como se os moradores da casa fizessem questão de manter na penumbra os miasmas que poderiam consumir em chamas tudo o que havia restado daquela outrora poderosa família. Os ingleses e seus pudores, pensou, enquanto caminhava por entre a imponente mesa de jantar e duas estátuas em estilo dórico.

Uma dose de estricnina havia tirado a vida de Lorde Paddington. Homicídio? Suicídio? Estava ali para descobrir. Afinal, não poderia deixar de atender um pedido da querida Condessa Romacoff, velha amiga do falecido. Ela havia ido ao seu escritório há alguns dias e lhe relatara as suas suspeitas de que Paddington fora assassinado. A condessa era uma mulher reservada, mas sugeriu ao detetive que a viúva – uma arrivista, segundo ela – teria sido a responsável pelo crime.

Após uma breve troca de olhares com Chesterton, o severo mordomo da família, o detetive belga compreendeu que o homem desejava falar-lhe. Seria possível despistar a escorregadia Lady Paddington, a viúva quase 40 anos mais nova que o marido que acabara de falecer? Sem forçar a situação e manuseando as palavras com cuidado, o homem de formas arredondadas e bochechas rosadas retomou a conversa e lançou uma frase aparentemente casual:

– Se Lorde Paddington era tão precavido como a senhora me disse, certamente deixou instruções acerca de suas últimas vontades...

Um ricto, que poderia ser de raiva ou um mero ajuste da máscara facial, percorreu o rosto esguio da senhora. Aos trinta anos, ainda era uma bela mulher. O detetive a desejou por um momento, mas o desejo foi substituído pelo instinto de preservação. Era uma mulher perigosa aquela. Ambiciosa e muito inteligente. Suas palavras soaram protocolares, mas, ainda assim, repletas de veneno:

– Há apenas um testamento. E apenas dois herdeiros – eu e o jovem Kenneth, seu filho, um dissipador que haverá de perder, em breve, tudo o que vier a receber. Na verdade, ele é o grande beneficiário de toda essa situação. Eu não passo de uma vítima de sua mente degenerada, pois o pai sempre foi permissivo. Meu marido não se furtava a pagar suas dívidas de jogo. Foi isso que quase nos levou à ruína.

Fez uma pausa, aprumou-se e continuou, agora já sem a tentativa de esconder a antipatia pelo enteado:

– Não há instruções e nem muitos bens. Meu marido deixou boa parte de sua fortuna nas mesas de jogo. Seu filho era um estróina, que não descansaria até extrair a última gota do sangue do pai. Por isso Randolph se matou! A vergonha... a vergonha era demais para um homem tão honrado. Vocês franceses não seriam capazes de entender!

O detetive manteve-se impassível. Seus olhos e ouvidos estavam atentos às palavras daquela mulher. Após outra pausa, ela baixou a voz e disse, em tom de confidência:

– Vivíamos de forma modesta, apesar da aparência faustosa desta casa. Como o senhor deve ter percebido, há poucos criados aqui e éramos obrigados a sobreviver com uma renda anual de duas mil libras. Duas mil libras! Anuais! Pretendo me mudar para Londres assim que terminarem os procedimentos do inventário. Kenneth deseja vender a propriedade mais que qualquer coisa. Na verdade...

– Na verdade?

– Na verdade ele era o único que realmente lucraria com a morte do pai. E naquele dia eles tiveram uma forte discussão. Talvez...

O detetive fingiu morder a isca. Mas havia pontos que não batiam em toda aquela história. Duas mil libras não seriam suficientes para prover a vida nada modesta do casal. Havia ouvido falar nos animados convescotes realizados naquela mansão e duvidou que a renda informada fosse suficiente para promover festas tão concorridas. Mas porque ela esconderia a real situação econômica do marido? Solidarizou-se com a jovem viúva, estendeu-lhe a mão roliça, e despediu-se dela:

– Lamento muito. Estou aqui a pedido de uma grande amiga da família e não pretendo causar-lhe qualquer constrangimento. Vim apenas prestar-lhe os meus respeitos. Estarei na Pousada Lonehill por alguns dias. Os médicos recomendaram...

A elegante mulher deslizou pela sala com graça e agilidade. Uma desenvoltura que se situava no limiar da vulgaridade e que não combinava com a sua origem supostamente aristocrática. Antes de sair, o detetive disse:

– Belga.

A mulher não entendeu e perguntou:

– Como?

– Sou belga. Não francês.

A mulher deu de ombros. Já haviam atravessado a porta principal. O detetive saiu da casa, desceu os degraus da imponente escadaria de granito e caminhou, lentamente, até o portão, onde havia deixado a carruagem. Não gostava de automóveis. Achava-os barulhentos e pouco elegantes. O cavalariço o aguardava com um olhar indiferente. Subiu no coche, que sofregamente se afastou da propriedade. Ao percorrer cerca de cem metros, o homem mandou que o cocheiro parasse. Depois de descer do coche, ordenou que o condutor fosse diretamente até a pousada e o esperasse por lá. O tom da voz era firme, mas não autoritário.

O muro da mansão era baixo, mas o detetive também era. Foi-lhe custoso ultrapassar o metro e meio que separava a propriedade do mundo exterior. Antes que pudesse por os pés no chão, mãos fortes o agarraram e o ajudaram a aterrissar sem maiores percalços. Era Chesterton:

– A Condessa Romacoff tinha razão. Você é, realmente, um cavalheiro bastante distinto.

O homem de bigodes agradeceu as palavras gentis e os dois se dirigiram a uma pequena edícula, por trás da casa principal. Havia outras construções na propriedade, incluindo um grande celeiro e uma garagem para os quatro automóveis da família. O mordomo não fez rodeios. Foi simples e direto:

– Minha filha não matou o marido, senhor... Ela é ambiciosa, mas nunca foi burra. Ela sabe que seria a primeira suspeita. E Kenneth é um pródigo, mas completamente inofensivo. Seria incapaz de tramar a morte do próprio pai. Eles discutiram naquele dia, mas nada de grave. Discutiam sempre.

As últimas palavras foram ouvidas com alguma dificuldade. A revelação de que Elizabeth era filha do mordomo bateu-lhe como um soco no estômago. Não estava preparado para isso. Mas estavam explicados os modos quase rudes da viúva. Olhou para o mordomo com uma expressão de curiosidade e este continuou:

– Quando a mãe de Margareth morreu, ela veio morar aqui na mansão. Lorde Paddington era um homem generoso e permitiu que eu a trouxesse. Pouco mais de um ano depois sua esposa faleceu. Tinha uma saúde frágil. Passaram-se mais três anos até que ele pedisse Margareth em casamento...

O velho mordomo tinha os olhos marejados. As lembranças eram vívidas, mas dolorosas.

– Margareth desejava uma vida de luxo e aceitou o pedido. Durante quase dez anos viveram em harmonia, até a chegada de Duncan...

O detetive sacudiu a cabeça a espera de novas informações. Seu cérebro fervia e seus pensamentos eram uma sucessão de idéias sem sentido. Era como se tivesse sido atropelado por uma locomotiva. Murmurou:

– Duncan...

– O motorista da família. Veio recomendado por um sobrinho de Lorde Paddington e logo desenvolveu uma...

– Uma...

– Uma certa afinidade por minha filha.

– E essa afinidade... foi correspondida?

O velho baixou a cabeça. Os poucos cabelos que restavam ali eram brancos como a neve. Nada disse e nem foi necessário.

– Duncan – repetiu o belga em voz baixa.

Depois disso, recompôs-se e perguntou:

– E onde está esse Duncan?

O mordomo ficou calado por algum tempo. Depois respondeu:

– Na noite em que Lorde Paddington foi envenenado, ele viajou para Londres. Está lá e tenho certeza que minha filha irá encontrá-lo. Ela não consegue raciocinar direito... E ele é um belo rapaz. Sedutor. E queria ficar com tudo isto – disse fazendo um gesto largo, como que para mostrar toda a extensão da propriedade – Duncan envenenou Lorde Paddington. Tenho certeza.

Havia convicção na voz do mordomo. O detetive pensou por alguns instantes. Depois, pediu para conhecer a biblioteca do falecido, se não fosse despertar suspeitas.

– Não será problema. Os outros empregados são discretos e minha filha já se recolheu aos seus aposentos. Mas, por favor, não se demore.

A biblioteca era ampla como a sala de jantar, mas mais opressiva. Mesmo com as luzes acesas era lúgubre e nada acolhedora. Sozinho no aposento, o belga examinou, meticulosamente, as gavetas. Depois, os livros. Meia hora depois, saiu da mesma maneira silenciosa e discreta que entrou. O mordomo o acompanhou até a porta dos fundos.

Lá, pediu ao tratador de cavalos que conduzisse o detetive até o final da propriedade. Após alguns minutos de caminhada, os dois homens chegaram aos limites da propriedade. O jovem abriu um pequeno portão de madeira, usado pela criadagem. Não trocaram palavra alguma, até que o belga perguntou:

– Há ratos na propriedade?

Surpreso com a pergunta, o rapaz de rosto sardento e olhos mortiços respondeu:

– Não, senhor. Não há ratos em Paddington Hall.

Fazia frio e o caminho até a cidade era de quase dois quilômetros. O homem de bigode arrependeu-se de ter liberado o cocheiro e maldisse a sua imprevisão. Caminhando pela sebe, reordenou os pensamentos. Um homicídio sempre tem um motivo por trás. Motivos econômicos são poderosos. E motivos amorosos também. Tirou do bolso a pequena carta que havia achado na biblioteca. Alguém havia procurado por ela naquele local, mas não obtivera sucesso. A pessoa fora descuidada e arrumara os livros de maneira desordenada, algo que alguém como Lorde Paddington jamais faria.

Como todos os ingleses das classes mais altas, o velho era previsível. Não foi difícil achar o esconderijo. A carta em que sua ardente mulher combina com o belo motorista a fuga para dali a alguns dias fora interceptada. Mas como? Antes ou depois de ter chegado a Duncan? E porque Elizabeth não fugiu assim mesmo? Estaria querendo proteger alguém? Ou apenas tentando livrar-se de alguma suspeita? Imerso em seus pensamentos, o belga chegou à pequena cidade. De repente, seu rosto se iluminou. Foi até a pousada e fez algumas ligações.

Quinze minutos depois, dirigiu-se ao boticário da cidade, que já o esperava. As apresentações foram breves e o detetive leu, com atenção, a relação de produtos vendidos nos últimos três meses. O livro de anotações era preciso e revelava a personalidade meticulosa do dono da botica. Simpatizou com o homem, que também lhe pareceu discreto e bastante competente. De repente, encontrou o que precisava. Uma quantidade razoável de noz-vômica havia sido adquirida há cerca de quarenta dias.

Sorriu para si mesmo, agradeceu a presteza do farmacêutico e rumou para a estação ferroviária. Assistiu ao longe a fumaça do trem se distanciar e pensou, melancólico: sou o homem que vê o trem passar. Após se identificar ao chefe da estação e confabular rapidamente com ele, confirmou as suas suspeitas. Alguém partira dali para Londres. Tudo começava a fazer sentido. Voltou à pousada e deliciou-se com um prato de faisão ao molho de vinho. A sobremesa não poderia ser mais auspiciosa: figos portugueses. Dulcíssimos. Antes de se recolher, fez mais uma ligação. Para Londres.

No dia seguinte, rumou para a propriedade dos Paddington. Dois policiais o acompanhavam, cortesia, mais uma vez, de outro grande amigo, o influente Lorde Ruffenborgh. O mordomo abriu a porta e o belga pediu-lhe que conduzisse a viúva até ele. Vinte minutos depois, estavam todos na biblioteca. A mulher pediu desculpas pela demora, pois precisava se compor. Maneando a cabeça, o detetive disse, secamente:

– A senhora quis me fazer crer que seu marido cometeu o suicídio. Mas nós dois sabemos que ele foi assassinado!

A mulher manteve-se calma. Apenas um leve tremor nas mãos demonstrava que, por dentro, estava em frangalhos. Disse:

– E o que o faz pensar que meu marido foi assassinado?

– Suicidas, geralmente, deixam cartas...

– Suas suposições são vagas, detetive. Os franceses são conhecidos por seu excesso de imaginação...

– Belga.

– Sim, sim, os belgas também. Mas o que lhe dá a certeza de que Lorde Paddington não se suicidou?

– Não há ratos em Paddington Hall. Mas há alguém que viajou daqui até Londres.

A mulher sentira o golpe. As pernas perderam as forças e ela arriou no sofá. Seu rosto era uma máscara de dor e desespero. Ela apenas murmurou:

– Não é o que o senhor está pensando. Não foi ele... não foi ele...

– Mas a senhora tentou protegê-lo, inclusive mentindo em relação à verdadeira situação econômica de Lorde Paddington...

– Duncan é um homem pobre. Seu único crime foi se apaixonar por mim. Mas ele não matou meu marido! Não matou! Se a notícia de que estávamos tendo um romance viesse à tona, todos iriam pensar que ele havia assassinado Lorde Paddington para ficar comigo e com a herança. E que, por essa razão, fugira para não despertar suspeitas. Por isso eu tentei protegê-lo.

– Não teve medo de ser você mesma acusada do crime?

– Eu não morava nesta casa há pelo menos um ano. Voltei a morar na casa dos empregados. Marianne, a copeira, e Sarah, a cozinheira, estavam comigo na noite em que Lorde Paddington morreu. Mas Duncan não tinha nenhum álibi.

– Então você imaginou que poderia ajudar seu amante incriminando um inocente?

– Não incriminei ninguém. Mas Duncan também é inocente.

– Eu sei disso. Afinal, ele viajou para Londres no mesmo dia em que seu marido foi morto, mas pelo menos dez horas antes. Eu chequei os horários dos trens.

Fazendo um gesto dramático, o pequeno homem dirigiu seu olhar teatral para o outro lado do cômodo. Fixou-se em Chesterton. Foi a vez do mordomo se sentir acuado. Mas manteve a fleuma, embora o tom da voz o traísse. Indagou:

– Como sabe que não foi ele?

– Fui até a estação e ali foi fácil descobrir o horário da viagem. Pelo menos dez horas antes da morte de Lorde Paddington. Isso reforçou a minha suspeita de que o falecido interceptou a carta depois que Duncan a tinha recebido. Por isso o motorista viajou até Londres, pois supunha que Elizabeth viajaria no dia combinado. Ele deve ter ficado decepcionado quando não a viu na estação no dia marcado – disse, agora se dirigindo à mulher.

– E quem teria sido o assassino? Perguntou o cada vez mais trêmulo Chesterton.

– Alguém que tinha um motivo. Alguém que não suportaria ver a própria filha abandonar o casamento com um homem de prestígio e posição, para se unir a alguém de uma classe inferior.

– Você não tem provas disso. Não tem provas, repetiu em um tom monocórdio e resignado. Não tem...

– Não há ratos em Paddington Hall, meu caro. O tratador de cavalos me disse.

– E daí?

– Daí, que razão haveria para que o mordomo da casa comprasse uma grande quantidade de noz-vômica, senão para extrair-lhes os caroços? E que utilidade teriam esses caroços, senão para fabricar estricnina? E para que alguém iria fabricar estricnina se não fosse para matar ratos?

– Ou pessoas... – disse um dos policiais.

– Mas o seu alvo não estava mais aqui, não é mesmo Chesterton? Você mataria o motorista e seria mais fácil difundir a tese de que ele se matara por amor. Mas para isso você precisava esconder as provas de que esse amor não tinha sido correspondido, não é mesmo?

O mordomo manteve-se calado. O belga tirou um papel do bolso e exibiu ao velho, cuja aparência estava ainda mais alquebrada. Falou:

– Você precisava destruir isto para justificar a sua teoria – e exibiu a carta. Você sabia que eles iriam fugir, mas não sabia a data. Quando percebeu que Duncan havia ido embora, você ficou desesperado. Não poderia mais executar o seu plano. E não tinha coragem de matar a própria filha para evitar a vergonha...

O velho arqueava e suas mãos tremiam. Suas forças esvaíam-se, sentia-se como se um vampiro lhe houvesse sugado todo o sangue. O detetive prosseguiu:

– Com a morte de Lorde Paddington, você seria poupado do opróbrio. Se Duncan fosse condenado, tanto melhor. Mas se a polícia engolisse a tese do suicídio e Elizabeth se unisse a Duncan, não haveria problemas. Ela seria uma mulher livre e rica. Mas o que importava era apenas o seu sentimento mesquinho e cruel. Não hesitou em deixá-la viúva. Não hesitou em matar o homem que o empregou por mais de 30 anos. Mas agora a farsa acabou.

– Eu lamento muito. Não queria que fosse assim. Não queria... Mas eu não conseguiria encarar Lorde Paddington se ela se fosse. Não conseguiria... E irrompeu em um pranto sincero. Havia alívio naquele choro e uma boa dose de arrependimento.

A filha lutava para conter dois sentimentos contraditórios: o alívio de saber que o amado não era o culpado e a dor de saber que o responsável pela morte do marido, por quem nutria um afeto genuíno e uma enorme gratidão, fora seu próprio pai. Balbuciou:

– Porque você nunca desconfiou de Kenneth?

– Não descartei a hipótese. Mas confirmei que ele estava distante daqui na noite em que o pai morreu. Como sempre, jogando... Se ele fosse acusado, provavelmente não conseguiria alguém que sustentasse o seu álibi, porque as pessoas que estavam com ele jamais admitiriam isso. Homens de bem e jogatinas não se misturam, não é mesmo? – e deu um sorriso cínico.

– E como teve a certeza de que o assassino foi o meu pai?

– Os mordomos, Madame, são sempre os culpados.

Recolocou o chapéu coco, alisou os bigodes e caminhou até a saída sem olhar para trás. O mordomo não impôs qualquer resistência aos policiais, que o conduziram rapidamente até a viatura. Fazia sol e o dia se prenunciava bastante agradável. Na pousada, um leitão ensopado esperava o voraz detetive belga. Georges Guriot havia solucionado mais um caso.

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Nem só de detetives argutos como Guriot, Poirot e Maigret vive a Bélgica. Célebre pela excelente qualidade de vida de seu povo e pelo ótimo chocolate, este pequeno país já deu ao mundo alguns jazzistas notáveis. Os mais célebres deles são Jean Baptiste Frederic Isidor “Toots” Thielemans e Jean “Django” Reinhardt. Mas há outro belga que merece entrar, com louvor, na galeria dos maiores músicos europeus de jazz: o espetacular Robert “Bobby” Jaspar.

Nascido no dia 20 de fevereiro de 1926, na cidade de Liége, este multiinstrumentista de talento superlativo começou a tocar ainda na infância. Primeiramente o piano e, em seguida, o clarinete. Algum tempo depois, dedicou-se ao aprendizado da flauta e do saxofone tenor. Apaixonou-se pelo jazz durante a adolescência, ao ouvir pelo rádio as célebres orquestras norte-americanas de swing. Lester Young e, algum tempo depois, Charlie Parker são as influências mais visíveis. Ainda garoto montou com o compatriota Toots Thielemans, o guitarrista que mais tarde se tornaria o mais importante gaitista do jazz, um grupo de dixieland.

Em 1950, mudou-se para Paris, onde o ambiente jazzístico era dos mais estimulantes. Ali, juntou-se a jovens músicos belgas e franceses, como René Urtreger, Pierre Michelot, René Thomas, Jacques Pelzer, André Hodeir, Bernard Willen, Henri Renaud e Daniel Humair, entre outros, para celebrar – e tocar – o mais puro jazz. Segundo o crítico Etienne Borgers, Jaspar “rapidamente se tornou uma das figuras centrais do jazz moderno em Paris. Sua técnica incrível e suas improvisações ousadas, seu lirismo e sua constante busca por novas experiências fizeram dele um dos mais aclamados jazzistas europeus dos anos cinqüenta”.

Naquela década era bastante comum encontrar músicos americanos exilados na França, como Sidney Bechet, Kenny Clarke, Buck Clayton, Don Byas ou Bud Powell. Uma jovem cantora e pianista norte-americana despertou o interesse do saxofonista: Blossom Dearie. Os dois se casaram em 1956 e, naquele mesmo ano, o casal decidiu se mudar para os Estados Unidos, fixando-se em Nova Iorque.

Ali, Jaspar se sentiu verdadeiramente em casa e pôde tocar com a nata do jazz. Atuou ao lado de gente como Herbie Mann, J. J. Johnson, George Wallington, Kenny Burrell, Jimmy Raney, John Coltrane, Hank Jones, Milt Jackson, Mal Waldron, Tony Bennett, Chris Connor, Oscar Pettiford, Wynton Kelly, Joe Puma, Sahib Shihab, Toshiko Akiyoshi, Tommy Flanagan, Donald Byrd, Jimmy Meritt, Idrees Sulieman, Chet Baker e dezenas de outros.

Em 1957, o saxofonista foi contratado por Miles Davis, para substituir o grande Sonny Rollins em seu grupo, que incluía também o pianista Tommy Flanagan. Contudo, a parceria não rendeu bons frutos e o belga foi dispensado, sendo que . Coltrane, com quem tocou no disco “Interplay for Two Trumpets And Two Tenors”, gravado naquele mesmo ano, foi o escolhido para substituí-lo.

Em 1961, separado de Dearie e de volta à Europa, liderou um quinteto, juntamente com o amigo René Thomas, de grande prestígio no continente. Quando Chet Baker, que havia sido condenado na Itália por porte de entorpecentes, saiu da prisão, Jaspar o acompanhou no álbum “Chet Is Back”, de 1962. O saxofonista começava a granjear um reconhecimento à altura do seu talento, quando foi arrebatado por um ataque cardíaco fulminante, no dia 28 de fevereiro de 1963. Tinha apenas 37 anos.

Felizmente, sua discografia, que inclui trabalhos para selos como Swing, Vogue, Barclay, Savoy, Columbia, Prestige, Atlantic e Riverside, está razoavelmente bem documentada e ainda é possível encontrar excelentes álbuns no mercado. Um deles é o estupendo “Modern jazz au club St-Germain”. Gravado nos dias 27 e 29 de dezembro de 1955 e lançado originalmente com o título “Memory Of Dick”, pela Barclay, o álbum voltou ao mercado, no formato de cd, em 2000, dentro da série Jazz In Paris, da Universal.

Acompanhando Jaspar, que se divide entre a flauta e o sax tenor, estavam alguns dos mais habilidosos músicos da cena francesa: o pianista René Urtreger, o guitarrista Sacha Distel, o baixista Benoit Quersin e o baterista Jean-Louis Viale. “Bag’s Groove” é o tema escolhido para abrir os trabalhos. A interpretação do quinteto é vigorosa e altamente swingante, com destaque para as acrobacias de Distel, o guitarrista que se tornaria cantor, apresentador de tevê e ícone da cultura francesa nas décadas seguintes.

A balada em tempo médio “Memory of Dick”, do próprio líder, vem a seguir e o grupo mantém a empolgação. Solos inventivos e tecnicamente complexos de Jaspar e Urtreger prendem a atenção do ouvinte. O cativante Distel apresenta uma abordagem bastante relaxada, mais próxima de um Jimmy Raney que de um Grant Green, enquanto o trabalho de Viale, sobretudo com o uso dos pratos, dá coesão rítmica ao tema.

Em “Milestones”, de Miles Davis, percebe-se a importância do bebop na formação dos integrantes do grupo. Urtreger é um dos mais talentosos discípulos de Bud Powell e sua atuação demonstra quão delicada é a tarefa de seguir os passos do mestre, sem abrir mão de seu próprio fraseado – e o pianista se sai muito bem do desafio. “Minor Drops”, do pianista belga Francis Coppieters (incorretamente grafado como Doppieters), também se arrima nas sinuosas veredas do bebop, mas não nega o delicado acento europeu. É, por certo, uma das mais charmosas faixas do disco, com direito a uma exuberante atuação de Jaspar.

Fazendo uso da flauta, Jaspar domina a cena em “I'll Remember April” e mostra as inúmeras possibilidades do instrumento no jazz. Criada pelo trio Gene De Paul, Don Raye e Patricia Johnston, a composição sempre esteve entre as preferidas dos jazzistas, tendo sido gravada por gênios como Charlie Parker, Clifford Brown, Sonny Rollins e Bud Powell. O solo de Viale é esplendoroso.

Uma versão animada e sacolejante de “You Stepped Out Of A Dream” revela, em seus breves três minutos e meio, toda a essência da alegria que deve ser inerente ao jazz. Nada pode ser mais caro ao estilo que o sacrossanto direito de músicos, de quaisquer matizes ou continentes, se reunirem pelo puro prazer de tocar. O diálogo entre o piano e o saxofone é a mais completa tradução dessa alegria e do despojamento próprio de quem ama muito o que faz.

Emerge de “I Can't Get Started” o baladeiro romântico e de enorme sensibilidade que é Jaspar. Com uma sonoridade à Stan Getz e um lirismo descomunal, o saxofonista desnuda a alma em solos de puro arrebatamento. Poucas vezes a canção de Vernon Duke e Ira Gershwin soou tão encantadora. São seis minutos de emoção em estado bruto e a discrição dos coadjuvantes, todos impecáveis, apenas realça o brilhantismo da execução do líder.

Outro momento memorável é a versão de “A Night in Tunisia”, clássico de Dizzy Gillespie, a qual o quinteto imprime um ritmo e um furor criativo ímpares. Atuações soberbas de Quersin e do líder, com direito a solos frenéticos e vigorosos. O álbum encerra em grande estilo e não é à toa que é considerado, por críticos e fãs, um dos momentos mais sublimes da carreira de Jaspar. Melhor dizendo, da carreira de todos os músicos envolvidos.

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segunda-feira, 25 de outubro de 2010

NAS ONDAS DO RÁDIO

Caros amigos do JAZZ + BOSSA,
Ouçam a entrevista que dei à Rádio Justiça e que foi ao ar no dia 16/10, dentro do programa "Na trilha da vida". Espero que gostem!

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quinta-feira, 21 de outubro de 2010

E SE BACH TOCASSE JAZZ?


Já houve quem dissesse que se Bach tocasse jazz, ele soaria como Dave McKenna. Também já foi dito que ouvi-lo improvisar é como receber uma lição de história sobre o piano jazzístico. No caso, dada por um dos maiores virtuoses do piano de todos os tempos, capaz de conjugar no mesmo cadinho de influências representantes de escolas cronológica e estilisticamente distintas, como James P. Johnson, Fats Waller, Art Tatum, Nat King Cole ou Bud Powell.

Dono de uma personalidade modesta, McKenna sempre recusou o papel de astro do jazz, preferindo se identificar como um pianista de salão, muito mais afeito a explorar as possibilidades da melodia que propriamente a criar harmonias. Em que pese a modéstia, teve a honra de ouvir do próprio Art Tatum, que o considerava uma espécie de sucessor, rasgados elogios à sua técnica refinada.

Nascido em Woonsocket, Rhode Island, no dia 30 de maio de 1930, ele construiu uma carreira discreta e pouco badalada – muito parecida com a sua própria maneira de ser. Seu senso melódico apurado e seu estilo vibrante fizeram dele um acompanhante dos mais requisitados, embora seu nome não mereça maior destaque nos compêndios e enciclopédias de jazz. Mas bastam poucos acordes para que o ouvinte perceba que McKenna é dono de um estilo peculiar e que sua técnica soberba é capaz de ombrear-se à dos maiores pianistas de qualquer época.

O amor pela música veio do berço. O pai, William McKenna, ganhava a vida como carteiro e empregava o tempo livre como baterista amador. A mãe, Catherine Reilly McKenna, tocava piano e violino. Foi ela quem deu as primeiras lições de piano ao pequeno Dave, quando ele ainda era criança. No final da década de 30, a família se mudou para Boston, onde Dave continuou os estudos, pelas mãos do professor Preston Sandiford.

As ondas do rádio invadiam a casa dos McKenna trazendo a música de Duke Ellington e Count Basie e o jovem Dave desenvolveu um amor incondicional pelo estilo. Nat King Cole é apontado pelo pianista como a sua principal influência, mas ele também reconhece a importância que músicos como Benny Goodman, Artie Shaw, Louis Armstrong, Charlie Parker e Dizzy Gillespie tiveram em sua formação. Torcedor do Boston Red Sox, o basebol é outra paixão que McKenna traz consigo desde a infância.

Com apenas 15 anos, Dave se filiou ao sindicato dos músicos e iniciou sua carreira profissional tocando em clubes da região de Boston. Sua primeira associação relevante foi com a banda do saxofonista Boots Mussulli, com quem tocou durante o ano de 1947. Algum tempo depois, foi contratado por Charlie Ventura para integrar-se à sua orquestra. Em 1950, foi a vez de se juntar à badalada orquestra de Woody Herman, o que o obrigou a se mudar para Nova Iorque. Alguns dos seus companheiros na big band foram Kai Winding, Ernie Royal, Bill Harris, Red Mitchell, Nilt Jackson, Carl Fontana e Shorty Rogers.

No ano seguinte, McKenna se viu obrigado a interromper a carreira profissional para servir o exército. Mas não abandonou a música, pois continuou tocando em diversas orquestras e bandas da corporação, inclusive na Coréia, onde os Estados Unidos estavam mergulhados em uma guerra sangrenta. Após cumprir o serviço militar, o pianista voltou a trabalhar na orquestra de Charlie Ventura, entre 1953 e 1954. Em seguida, realizou trabalhos com Gene Krupa, Stan Getz, Urbie Green, Zoot Sims, Al Cohn, Charlie Parker, Teddy Charles, Eddie Condon, Benny Goodman, Ruby Braff, Osie Johnson, Jimmy Raney, Bob Wilber, Phil Woods, Rosemary Clooney, Tony Bennett, Anita O’Day, Chuck Wayne e outros.

Apesar de bastante ocupado por causa dos compromissos profissionais, McKenna não esquecia a grande paixão da infância: o baseball. Seu amor pelo esporte era tamanho que ele integrava o time amador chamado “The Al Thomson’s Drunks”, organizado pelo saxofonista Al Thomson e integrado, entre outros, por Zoot Sims. O time costumava disputar animadas partidas no Central Park e seu feito mais relevante foi uma vitória sobre os integrantes da orquestra de Harry James – que provavelmente eram tão chegados a uma bebida quanto os Drunks.

No final dos anos 50, comandou o piano na banda do trompetista Bobby Hackett, que o considerava o maior pianista do mundo. A parceria durou quase uma década e, além da amizade, rendeu mais uma mudança de endereço a McKenna, que trocou a feérica Nova Iorque pela bucólica Cape Cod, no estado do Massachusetts. Refletindo a vida menos agitada que passou a levar, Dave se afastou dos estúdios e reduziu sensivelmente a atuação como sideman.

McKenna acompanhou ninguém menos que Louis Armstrong na edição do Newport Jazz Festival de 1970. A nova década injetou outro ânimo à carreira do pianista e sua agenda voltou a ser das mais requisitadas. A partir daí, tocou com novos valores, como Scott Hamilton, Warren Vaché, Gray Sargent, Marshall Wood, Daryl Sherman, Kenny Davern e Ed Bickert, e com veteranos como Joe Venuti, Red Norvo, Flip Philips, Dick Johnson, George Duvivier, Lou Colombo, Bucky Pizzarelli e Buddy Rich.

Dave desenvolveu uma técnica singular, na qual a mão esquerda desempenha um papel rítmico importantíssimo, usando toda a extensão do teclado e fazendo com que o piano soe como um pequeno conjunto. Nas palavras do crítico Howard Reich, do Chicago Tribune, “o que outros pianistas dizem com um rugido, McKenna consegue expressar com um sussurro. E enquanto outros virtuoses deleitam-se com o brilhantismo de sua própria técnica, McKenna quase que se esforça para disfarçar sua. Ele é Chopin em um mundo que reverencia Liszt. Ele é Mozart em uma era que cultua Mahler.”

A carreira fonográfica inclui álbuns por selos como ABC-Paramount Records, Epic, Bethlehem, Realm, Chiaroscuro, Arbors e Concord Jazz. Por esta gravadora, lançou o espetacular “No Bass Hit”, gravado em março de 1979. Tendo a seu lado os sensacionais Scott Hamilton, no sax tenor, e Jake Hanna, na bateria, McKenna brinda o ouvinte com performances espetaculares, altamente representativas do seu estilo personalíssimo.

A faixa de abertura é “But Not for Me”, dos Irmãos Gershwin, que começa em ritmo dolente, com o sax e o piano dialogando lentamente. À medida em que a bateria vai se agregando aos outros dois instrumentos, a canção acelera progressivamente e ganha ritmo. McKenna revela aqui toda a importância do swing em sua formação e Hamilton, melodista de recursos aparentemente ilimitados, faz jus à fama de saxofonista da velha escola, cujo estilo se aproxima muito mais de um Coleman Hawkins que de um John Coltrane.

“If Dreams Come True” é fruto da parceria entre Benny Goodman, Irving Mills e Edgar Sampson. Também calcada no swing, salta aos olhos aqui a capacidade técnica do pianista, cuja mão esquerda substitui o contrabaixo na estruturação rítmica do tema. Impressionante como ele consegue improvisar com destreza e intensidade, sem se afastar tanto da melodia. Hanna está muito à vontade e apresenta um solo verdadeiramente explosivo.

“Long Ago (And Far Away)”, de autoria de Ira Gershwin e Jerome Kern, é uma das baladas prediletas dos jazzistas e o trio a interpreta de maneira reverente, exalando romantismo. A atuação de Hamilton lembra o Stan Getz dos anos 50. “Drum Boogie”, de Roy Eldridge e Gene Krupa, volta a eletrizar o ouvinte, com sua batida irresistível e seu ritmo infeccioso. McKenna trafega pelo teclado com a agilidade de um bailarino, enquanto Hanna, bom discípulo de Krupa, elabora um verdadeiro tratado percussivo, exibindo um domínio absoluto do instrumento naquele que é, provavelmente, o solo mais empolgante do disco.

“I Love You, Samantha” é uma obscura balada de Cole Porter. Embora pouco conhecida, traz a sofisticação típica do compositor e sua execução em tempo médio abre espaço para que todos os três músicos brilhem igualmente. A performance de Hamilton é notável, com direito a solos lesterianos e um lirismo de levar o ouvinte às lágrimas. O pianista responde à altura, imprimindo uma belíssima tintura de blues ao tema.

“I'm Gonna Sit Right Down (And Write Myself a Letter)”, de Fred Ahlert e Joe Young foi imortalizada na voz de Nat King Cole. A interpretação do trio é deliciosa, com Hamilton em estado de graça. A técnica orquestral de McKenna pode ser ouvida em sua inteireza, merecendo destaque o exuberante duelo entre o saxofone e piano, no estilo pergunta-e-resposta. Embora tenha uma estrutura melódica mais convencional, o trio impõe ao tema referências explícitas ao bebop, desenvolvendo harmonias extremamente intrincadas.

Mais uma vez, Cole Porter está presente, agora com “Easy to Love”, uma de suas mais emblemáticas composições. A sonoridade encorpada de Hamilton, quase rude, contrasta com o toque refinado de McKenna. O disco encerra com uma vibrante interpretação de “Get Happy”, de Harold Arlen e Ted Koehler, que faz uma releitura modernizada do swing e explora o tema de maneira ousada, com direito a inflexões tipicamente boppers.

“No Bass Hit” marcou o início da prolífica associação do pianista com a gravadora e que se estenderia pelos 20 anos seguintes. O trio voltaria a atuar junto no também ótimo “Major League”, gravado em 1986. Ambos os discos foram reunidos em “Double Play”, cd duplo lançado em 2002 que é indispensável nas estantes e players de qualquer jazzófilo.

Durante o período em que esteve na Concord, Dave demonstrou um especial apreço pelo formato solo, tendo gravado diversos álbuns sem qualquer acompanhamento, inclusive para a série Mayback Recital. Também foi, durante boa parte dos anos 80, o pianista oficial do clube Oak Bar, localizado no Copley Plaza Hotel, em Boston. Os pianistas Oscar Peterson e George Shearing, os cantores Frank Sinatra e Tony Bennett, o maestro Kurt Masur, o jogador de baseball Ted Williams e a atriz Faye Dunaway eram algumas das muitas celebridades que costumavam prestigiar seus concertos.

Em janeiro de 1985, McKenna e os amigos Al Cohn, Zoot Sims e Gerry Mulligan brindaram os moradores de Nova York com uma memorável apresentação na Church Of The Heavenly Rest, igreja de arquitetura gótica plantada em plena 5ª Avenida. Desfiando um repertório que misturava standards consagrados, como “Willow Weep For Me”, e clássicos da época dos Four Brothers, como “Broadway”, o quarteto encantou os quase mil espectadores e demonstrou que o jazz – que já havia sido apelidado de “Música do Diabo” – podia, certamente, ser considerado um estilo musical verdadeiramente celestial.

A década de 90 viu McKenna atingir a plenitude de sua arte. Reverenciado por músicos de todas as gerações, lançou álbuns primorosos, como “Sunbean And Thundercloud”, em duo com o saxofonista Joe Temperley, e “Do Nothing Till You Hear From Us” e “You Must Believe In Swing”, no qual divide o estúdio com outro grande virtuose, o clarinetista Buddy DeFranco. Todos os três discos foram lançados pela Concord.

Em 1995, quando comemorava 50 anos de carreira, McKenna foi o grande homenageado do New England Jazz Festival. O ponto alto do festival foi a leitura, pelo Senador Edward Kennedy, de uma carta escrita por ninguém menos que o Presidente Bill Clinton, fã de jazz e admirador confesso do pianista.

Apreciador dos prazeres do copo e da mesa, Dave era considerado um ótimo garfo e capaz de beber hectolitros de álcool. Quando os médicos lhe recomendaram moderar os hábitos, teria comentado com a amiga Louise Choo, esposa do saxofonista Zoot Sims: “Se eu fizer o que os médicos mandam, provavelmente vou viver mais. Mas quem garante que eles estão certos?”.

Em 2000, o pianista foi uma das atrações do concerto comemorativo dos 85 anos do saxofonista e velho parceiro Flip Philips, tocando ao lado de craques de diversas gerações, como Jack Sheldon, Clark Terry, Joe Wilder, Kenny Davern, Ken Peplowski, Phil Woods, Howard Alden, Billy Bauer, Milt Hinton e muitos outros. Mas já naquela época apresentava graves problemas de saúde.

O desregramento à mesa haveria de cobrar um alto preço e o novo século trouxe consigo o agravamento de seu estado. O diabetes foi implacável e tornou dificultosa a locomoção do músico, que precisava de muletas para andar. Além disso, McKenna desenvolveu uma doença chamada síndrome do túnel carpal, que limitava-lhe os movimentos das mãos e que o obrigou a abandonar os concertos. Ele se recolheu ao pequeno apartamento em Providence, Rhode Island, onde costumava receber a visita de alguns poucos amigos, como o pianista Hod O’Brien e o crítico Nat Hentoff.

Seu último disco foi “An Intimate Evening With Dave McKenna”, álbum de piano solo gravado ao vivo no clube Sarasota Opera House, em Sarasota, Flórida, que foi lançado pelo pequeno selo Arbors Records em 2002. Ele faleceu no dia 18 de outubro de 2008, em conseqüência de um câncer no fígado. Deixou uma obra de fôlego e inúmeros herdeiros musicais, como o próprio Hod O’Brien, e Bill Charlap.

O pesquisador Sylvio Lago resume bem a importância e a originalidade do pianista. Segundo ele: “McKenna foi um dos mais rítmicos e completos estilistas do piano moderno, impressionando quando improvisa com absoluta independência das mãos, com a esquerda imensamente rica e a direita explorando todas as possibilidades técnicas do improviso e do próprio piano. Rica também é a dinâmica que imprime aos improvisos, conhecidos pela fluência e desembaraço excepcionais”.

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quinta-feira, 14 de outubro de 2010

ENVELHECENDO COMO OS MELHORES VINHOS


Na mitologia do bebop, Cecil McKenzie Payne está para o sax barítono assim como Dizzy Gillespie está para o trompete, Charlie Parker para o sax alto e J. J. Johnson para o trombone. Foi um pioneiro, um desbravador, um músico que pode se orgulhar da trajetória singular e absolutamente original. Infelizmente, jamais obteve a mesma visibilidade que seus pares anteriormente citados. Tampouco conseguiu o mesmo prestígio que baritonistas mais novos.

Para o bem ou para o mal, enquanto saxofonistas como Gerry Mulligan ou Pepper Adams tiveram, por parte da crítica e do público, reconhecimento compatível com seus talentos, Payne ainda remanesce nas sombras. Mas tanto Mulligan quanto Adams sempre souberam reconhecer a importância de Cecil para o desenvolvimento do sax barítono no jazz e não hesitam em incluí-lo no rol de suas influências mais importantes. Conhecer um pouco de sua vida e obra é tarefa que se impõe a todos aqueles que gostam do jazz – e essa talvez seja a melhor forma de homenageá-lo.

Nascido no Brooklyn, Nova Iorque, no dia 14 de dezembro de 1922, Payne teve uma infância normal. Nada faria supor que o garoto, que gostava de cantar e tocar guitarra, fosse se dedicar seriamente à música, até que o dia mágico chegou. A revelação veio pelas ondas do radio, quando o jovem Cecil tinha apenas 13 anos. Lester Young, astro da orquestra de Count Basie, emendava um fabuloso solo em “Honeysuckle Rose” e o vírus do jazz contaminou o garoto para todo o sempre. Pouco depois, seria a vez de assistir, ao vivo, a uma apresentação da orquestra de Basie no Teatro Bedford e constatar a incrível musicalidade de Pres.

Ainda sob o impacto do que havia visto e ouvido, o jovem Payne pediu ao pai um saxofone alto de presente, no que foi prontamente atendido. Logo, logo, começou a receber as primeiras lições, pelas mãos de um saxofonista do bairro, chamado Pete Brown. Não demorou muito para que o garoto começasse a participar de suas primeiras jams, nas quais pontuavam outros jovens músicos de Nova Iorque, como Randy Weston, Max Roach, Wynton Kelly, Ahmed Abdul-Malik e Duke Jordan.

Reza a lenda que os pais de Cecil queriam que ele fosse dentista, profissão pela qual o futuro músico não nutria a menor simpatia. Para sepultar de vez os desejos paternos, o jovem justificou seu desinteresse pela carreira com um argumento simples, mas poderoso: “Ora pai, quem é que iria querer freqüentar um dentista chamado Dr. Payne?”.

Na época, Cecil fazia parte de uma banda chamada Boys High School, que era integrada pelo amigo Roach, pelo trompetista Victor Coulson, pelo pianista Allen Tinney e pelo baixista Leonard Gaskin. O grupo costumava se apresentar no o Monroe’s Uptown House e consta que o próprio Charlie Parker chegou a se apresentar algumas vezes com os garotos.

A rotina de gigs foi quebrada com a convocação para servir o exército, em 1942. Na corporação, Payne tocou em diversas orquestras e se dedicou a mais dois instrumentos de sopro: a flauta e a clarineta. Em 1946, após ter rodado o mundo – serviu até em Okinawa, no Japão – Cecil foi dispensado e voltou a Nova Iorque, decidido a levar adiante a carreira musical.

O primeiro emprego foi na banda de Clarence Biggs, onde começou a tocar sax barítono. Também fez algumas gravações, como altoísta, sob a liderança de J. J. Johnson, até se unir à orquestra do trompetista Roy Eldridge, que então funcionava como atração fixa do clube Spotlight. Foi durante o período em que esteve na big band de Eldridge que Payne trocou, definitivamente, o sax alto pelo barítono.

Determinado a descobrir os mistérios do instrumento, aproveitava o tempo livre para aperfeiçoar suas habilidades em clubes como o Putnam, o Tony’s e o K & C. Foi o primeiro baritonista a transpor para o instrumento as indóceis harmonias do bebop e, por conta dos solos incendiários e da arrojada concepção musical, sua reputação no disputado circuito musical de Nova Iorque só aumentava.

Por essa razão, o Dizzy Gillespie o convidou para integrar a sua orquestra, fato que representou um divisor de águas na carreira do saxofonista. Payne ajudou a moldar a identidade da banda, que contava com a presença de monstros da estatura de Milt Jackson, Ray Brown, Chano Pozo e James Moody, e participou de gravações célebres, como “Cubano-Be, Cubano-Bop”, “Ow!” ou “Stay on It”.

Em 1949, deixou a orquestra de Gillespie, para investor na carreira solo. Gravou para a Decca seu primeiro álbum como líder, à frente de um combo que incluía o pianista Duke Jordan e o trompetista Kenny Dorham. Devido à pouca repercussão do trabalho, Payne aceitou o convite de Tadd Dameron e juntou-se à banda do pianista, permanecendo ali até 1950.

Depois, viriam trabalhos ao lado de James Moody, em 1951, Coleman Hawkins, em 1952, e Illinois Jacquet, de 1954 a1956. Ainda em 1956, excursionou pela Europa com o velho amigo Randy Weston r gravou para a Savoy o LP “Patterns Of Jazz”. Em 1957, ele e Pepper Adams atuaram ao lado de John Coltrane nas gravações do álbum “Dakar”. Até então, Cecil já havia atuado, como sideman, em gravações sob a liderança de Ernie Henry, Earl Coleman, King Pleasure, Clark Terry, Matthew Gee, Jimmy Cleveland, Dinah Washington, Kenny Burrell, Randy Weston, Cannonball Adderley e outros mais.

O ano de 1958 marcou o afastamento temporário dos palcos e estúdios. Payne decidiu trocar a música pelo trabalho de corretor de imóveis, na imobiliária do seu pai. Felizmente, em 1960 ele desistiu de vender casas e apartamentos e voltou à música. A partir daí vieram trabalhos com Machito, Kenny Drew, Lionel Hampton, Benny Golson, Kenny Dorham, Lucky Thompson e Woody Herman.

Atuou na peça “The Connection”, do dramaturgo Jack Gelber, e, em 1961, lançou o tributo “Performing Charlie Parker Music”, acompanhado por Clark Terry, Ron Carter, Duke Jordan e Charlie Persip. Em 1969, mais de 30 anos depois de ter ouvido Lester Young na orquestra de Count Basie, fato que definiu a sua escolha profissional, Payne juntou-se à orquestra do pianista e ali permaneceu por cerca de três anos.

Gravou com regularidade para pequenos selos como Xanadu e Muse e em 1974 integrou a New York Jazz Repertory Company, ao lado de quem excursionou pela Europa com o musical “The Musical Life of Charlie Parker”. No elenco estelar, nomes como os saxofonistas Sonny Stitt, Charles McPherson, Eddie “Lockjaw Davis e Budd Johnson, o pianista Earl Hines, os trompetistas Red Rodney e Ray Copeland, o trombonista Curtis Fuller, o baixista Earl May, o baterista Mickey Roker e o cantor Billy Eckstine.

Na década de 80, Payne agregou-se ao projeto Dameronia, banda comandada por Philly Joe Jones com o objetivo de celebrar a música do pianista, compositor e arranjador Tadd Dameron. A morte de Philly, em 1985, determinou a separação do grupo, que chegou a contar com os talentos de gente como Frank Wess, Walter Davis Jr. e Johnny Coles. Um dos momentos memoráveis de sua carreira nos anos 80 foi o reencontro com o velho parceiro Illinois Jacquet, que rendeu uma aclamada temporada em diversos clubes de Nova Iorque. Payne liderou diversos combos naquela década, boa parte deles contando com a inestimável presença do pianista Richard Wyands.

No início dos anos 90, Payne passou a integrar o cast da gravadora Delmark, por onde lançou alguns dos melhores discos de sua longeva carreira. Um deles é o estupendo “Chic Boom: Live At The Jazz Showcase”, gravado ao vivo no badalado clube Jazz Showcase, em Chicago, nos dias 17 e 19 de agosto de 2000. O álbum conta com os talentos do tenorista Eric Alexander, do baterista Joe Farnsworth, do baixista John Webber, do trompetista Jim Rotondi e do pianista Harold Mabern.

Cecil, do alto de impressionantes 77 anos, dá uma aula de vitalidade e incendeia os seus comandados, que respondem à altura. Todas as composições são de autoria do velho saxofonista, sendo que algumas em parceria com Farnsworth, exceto o standard “Here's That Rainy Day”, de Sonny Burke e Jimmy Van Heusen.

Na primeira faixa, “Chic Boom”, o sexteto faz uma vigorosa travessia pelos mares revoltos do hard bop. Muita energia e disposição, sobretudo por parte do líder, de Rotondi e do ultravirtuose Alexander, cujos solos parecem desafiar as leis da mecânica. Harold Mabern, que na época estava com 64 anos, é uma enciclopédia viva do blues e seu piano arredio dialoga com os metais com intensidade de um vulcão.

“Ding-A-Ling”, fruto da parceria Farnsworth/Payne, vem em seguida, mantendo a mesma pegada. Os solos do líder são extremamente intrincados e demonstram as razões pelas quais ele é idolatrado por baritonistas das mais diversas gerações – de Gerry Mulligan a Ronnie Cuber. Fabulosas também são as performance de Rotondi, um dos mais exuberantes trompetistas da atualidade, e do dínamo Farnsworth.

Em seguida, mais uma composição da dupla, “You Will Be Mine Tonight”, uma charmosa balada romântica que muda radicalmente a atmosfera do concerto. Payne transita com sobriedade e lirismo pelos climas amenos e Rotondi, fazendo usa da surdina, mostra que absorveu bem as lições de Miles Davis – é eloqüente, mesmo utilizando poucas notas. Mabern brilha em um solo curto, mas de elevada carga emocional.

“Bosco” é a composição mais elaborada do álbum, com elementos de blues e de música latina. Farnsworth tem um senso rítmico dos mais apurados e sua percussão é vigorosa. O sopro do líder conjuga robustez e entusiasmo, demonstrando que o jazz, sobretudo nas apresentações ao vivo, deve primar pela espontaneidade, acima de tudo. Alexander chega a ser insolente em seu solo – o ouvinte fica perplexo, tentando entender como alguém consegue construir solos de tamanha complexidade técnica. Instigado pelo tenorista, o versátil Rotondi agora apresenta a sua faceta incendiária, com ecos de Clifford Brown.

“Here's That Rainy Day” revela a versatilidade do líder, que usa a flauta com a mesma desenvoltura com que maneja o sax barítono. Mabern tem uma atuação memorável, brincando com o teclado com a alegria de um garoto, fazendo citações ao tema do desenho Popeye e à indefectível “Misty”. Weber tem a oportunidade de exibir um admirável senso melódico e uma ótima capacidade de improvisação.

Voltando ao clima vulcânico das primeiras faixas, “Cit Sac” é um tema dos mais energéticos, com o sexteto tocando na velocidade do som e interagindo de maneira telepática, fazendo citações a “I’ll Remember April”. Alexander é uma usina de imaginação e técnica, conseguindo ser original e, ao mesmo tempo, reverente à escola de grandes improvisadores do tenor, especialmente o Coltrane da época da Prestige/Blue Note e o Sonny Rollins do início dos anos 60. A vigorosa percussão de Farnsworth e o endiabrado trompete de Rotondi também se destacam.

“Theme” encerra o álbum em alto astral. É quase uma vinheta de pouco mais de três minutos, onde o sexteto se diverte com uma bem-humorada incursão pelo swing e pelo bebop. Durante a apresentação da banda, os entusiásticos aplausos para os músicos, sobretudo para o líder e para Mabern – chamado de “The Iron-Man of the keyboard” – indicam que a noitada deve ter sido inesquecível para a audiência. Sorte nossa que, com o disco em mãos, podemos nos transportar para aquelas noites mágicas de agosto, como se estivéssemos ali, ao lado do palco.

Cecil viveu momentos difíceis com a chegada do século XXI. Embora se mantivesse ativo, realizando concertos em clubes de Nova Iorque como o Smoke, um glaucoma o obrigou a reduzir drasticamente os shows e gravações. Sem esmorecer, enfrentou a doença e as dificuldades financeiras com o apoio da Jazz Foundation of America, que bancou boa parte das despesas com tratamento médico.

No início de 2006, foi diagnosticado um câncer de próstata, que o forçou a uma aposentadoria não programada e que acabaria por ceifar-lhe a vida, no dia 27 de novembro de 2007. Primo do trompetista Marcus Belgrave e irmão da cantora Cavril Payne, Cecil legou à posteridade uma obra honesta e digna, embora, infelizmente, não muito conhecida.

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